CRÔNICAS DE UM FAVELADO: Infância na Maré

Da infância na maré me lembro pouco, ou quase nada, da indignação dos moradores frente às condições (sub) humanas que caracterizavam aquele cotidiano. Minha inocência infantil se envolvia com outras imagens e aspectos do cotidiano; se fixava em formas, ritmos e cores que na visão quase sempre onírica do olhar infantil revelavam um espaço mágico e labiríntico formado por uma arquitetura improvisada onde becos saiam em becos, onde portas se confundiam com janelas e onde pessoas e animais conviviam harmoniosamente num ambiente praticamente rural que pra mim era a imagem do paraíso - o lugar onde nasci; cresci e criei laços afetivos, espaciais e pessoais que hoje compõem a minha história, a minha origem.

Enquanto alguns espaços da favela me fascinavam pelas possibilidades lúdicas, oferecendo formas diversificadas de interação física, onde vivências, jogos e brincadeiras infantis se articulavam com uma naturalidade e uma espontaneidade sem igual; outros me apavoravam e me atormentavam pela fragilidade estrutural e pelo perigo sempre iminente.

Pique Bandeira, Pique Esconde, Polícia Ladrão, Carniça, Bento que bento é o frade, Garrafão, Pique Tá, Pique Cola, Bola de Gude, Pião, Chicotinho Queimado, Amarelinha e tantas outras brincadeiras do universo infanto-juvenil que recordo com saudades; tudo acontecia em uma harmonia sem igual, que só a mente infantil livre de condicionamentos e preconceitos era capaz de perceber.

Um dia seguia ao outro oferecendo um variado leque de opções em uma espantosa explosão de possibilidades interativas. A felicidade era realmente continuada.

Mas ter que acompanhar minha avó ou minha mãe à casa de alguma amiga ou parenta que naquela ocasião vivia na Nova Holanda, ou ter que ir levar lavagem para os porcos no chiqueiro com algum vizinho era um verdadeiro tormento.

A atmosfera era apavorante, onde pessoas, em situação ainda mais desumana e humilhante que a nossa lá no pé do morro, se equilibravam em passarelas instáveis e inseguras feitas de restos de madeira que a maré trazia e que, só Deus sabe como, eram arquitetonicamente improvisadas ligando uma palafita à outra.

O cheiro fétido que exalava da mistura composta de lixos e detritos orgânicos jogados a céu aberto pelos moradores da comunidade na maré parecia insuportável no verão. O cheiro subia da lama provocando náuseas e dores de cabeça nos menos acostumados. E se de lá do morro já era insuportável, imagina quem morava nas palafitas quase flutuantes.
Meu Deus! Se eu escorregar e cair na maré? `

Cada passo era cuidadosamente estudado, pois uma madeira em falso podia representar o inevitável mergulho naquela lama imunda que só desaparecia quando a Maré enchia no final da tarde.

Nos rostos das crianças desnutridas, quase sempre nuas ou seminuas, à porta ou à janela de seus barracos, se revelava a face apavorante da miséria e da pobreza que deforma os corpos e corrói a dignidade do ser humano; nos olhares resignados dos adultos, a sombra da indignação. E ainda assim era possível ver aqui e ali um sorriso humilde ao avistar um desconhecido que em sua sinceridade e inocência irradiava uma luz sobre humana que não existem palavras no vocabulário do homem que possam descrever a magnitude de tal beleza.

Donas Marias, Seus Josés, Seus Pedros, Donas Joanas e tantas outras donas e donos compunham o universo adulto que, nas minhas imagens de criança, parecia formar uma grande família, que se saudava e se cumprimentava a cada encontro como se se conhecessem há milênios.

- Oi Dona Joana! Como vai?
- Dá lembrança pra fulano, D. Maria!

E foi testemunhando a força desses lutadores que construíram grande parte da história arquitetônica da cidade maravilhosa trabalhando como obreiros na construção de prédios, pontes, estradas e monumentos; servindo aqui e ali em casas de famílias, bares e restaurantes, que cresci aprendendo a andar e correr sem medo por essas pontes e becos, descobrindo em minha adolescência outras nuances, outras facetas daquele universo rico e dinâmico que na verdade era e ainda é a síntese da nossa cultura.

Foi na esperança estampada nos olhos desses atores sociais que diariamente repetiam a mesma rotina estafante de coletivos e trens lotados indo ainda de madrugada para o trabalho e voltando para casa exaustos no entardecer quase à noitinha, que vislumbrei a possibilidade de mudança e transformação social que hoje impulsiona o meu trabalho de afirmação de nossa identidade e cidadania.



Na satisfação revelada no rosto sofrido, e tão prematuramente envelhecido pela lida, aprendi o valor do dever cumprido. Na importância do humilde sustento oferecido à família através de muita luta é fé num futuro melhor aprendi a valorizar a grandeza do trabalho, enquanto os irritantes auto falantes da Sede, como era conhecida a associação de moradores da Baixa do Sapateiro tocavam, por intermináveis horas: “Ô, Ô, Ô Brasil gente pra frente construindo essa nação, com trabalho permanente, com firmeza e coraçãoãoãoão... É um país que canta, trabalha e se agiganta, é o Brasil do nosso amorrrrrrr...” promovendo o orgulho a uma Pátria Mãe Gentil que nos negava, e infelizmente ainda nos nega, o direito à cidadania plena. http://flip.it/2JSMQ

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Diógenes Di Lima